Por Edson Borges Júnior*
Nos últimos dias de 2023 fui surpreendido pela notícia de que o Projeto de Lei 1.184, concebido há 20 anos, voltou a tramitar nas esferas federais. Já passou pelo Plenário, Senado e agora retornou novamente para a Câmara dos Deputados. Diversas reivindicações desse PL merecem atenção, a começar pelo direito de acesso a esse tipo de modalidade terapêutica somente a mulheres inférteis e casais heterossexuais, impedindo que mulheres com contraindicações provadas cientificamente ou casais homoafetivos masculinos possam se beneficiar desse tipo de tratamento.
Além disso, o projeto estipula a destinação de, no máximo, dois óvulos para a fertilização em laboratório, evitando a criação de excesso de embriões, além de restringir o congelamento de embriões e a realização de biópsias para investigar previamente doenças que podem se desenvolver no futuro. Se examinarmos com atenção cada ponto desses, parecem incongruentes com o momento em que vivemos agora. Em duas décadas, muita coisa mudou, a começar pelas transformações sociais e pelo advento da tecnologia no mundo da saúde.
Podemos começar analisando as questões sociais. Atualmente, as mulheres têm optado por engravidar cada vez mais tarde por razões profissionais ou até mesmo para alcançar um equilíbrio financeiro para dar boas condições ao filho. Soma-se a isso o fato de que o índice de problemas de fertilidade tanto em homens quanto mulheres segue aumentando a cada ano. Outro ponto é a criação de novas constituições familiares – de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já existem 19 diferentes – que muitas vezes precisam da ajuda da reprodução assistida para formar uma família com filhos.
Fica assim, por este PL 1184, proibido o tratamento de casais homoafetivos, homens e mulheres solteiras, os transgêneros e tantas outras situações em que as técnicas de Reprodução Assistida podem ser empregadas.
A matéria do PL, constituída em 2003, foi aprovada pelo Senado sem nenhuma alteração, levando em conta o cenário de 20 anos atrás, quando ainda estávamos engatinhando nas técnicas de reprodução humana no Brasil. Hoje, graças à ciência e à tecnologia, atingimos um patamar de excelência, que nos permite minimizar os problemas de infertilidade com eficiência, assim como ter uma visão mais minuciosa sobre os embriões gerados in vitro. No Brasil, a infertilidade acomete cerca de 10 milhões de pessoas. É a segunda doença com maior incidência no país, ficando atrás somente da obesidade.
Com os avanços da ciência e do conhecimento genômico, além da forte contribuição da Inteligência Artificial nos últimos anos, conseguimos acompanhar com precisão o desenvolvimento do embrião, sua qualidade para transferência para o útero, assim como checar as probabilidades de ele vir a desenvolver doenças crônicas herdadas dos pais.
Cabe ainda lembrar que, no mundo atual, nossa perspectiva de vida é mais elevada do que há 20 anos – em média, estima-se que a geração de jovens adultos chegará ao menos aos 85 anos. Porém, o ovário começa a “envelhecer” a partir dos 35 anos. E muitas mulheres, ao optar pela maternidade tardia, podem e devem considerar o congelamento de óvulos para garantir que lá na frente, quando ela desejar engravidar, as chances sejam maiores. A série de proibições impostas pela PL 1.184, que determina entre outros que embriões devem ser transferidos a fresco, proibindo assim seu congelamento, proibindo a gestação de substituição (“barriga solidária”) e ainda retira a anonimidade dos doadores de sêmen e das ovodoações já realizadas, afeta diretamente esse processo.
Eu acredito no poder das leis e o segmento de reprodução assistida no Brasil precisa dessas regulamentações, porém que sejam adequadas ao universo atual e acompanhem a ciência. Os legisladores estão buscando as entidades médicas para que ajudem a entender esse cenário. Porém, o país tem um arcabouço jurídico complicado, com regulamentações que podem tolher os avanços obtidos pela medicina de reprodução assistida até aqui, que não foram poucos e trouxeram esperança para muitas mulheres e homens que sonhavam em ter um filho e não conseguiam pelos métodos tradicionais.
A medicina reprodutiva por aqui está muito bem em relação ao resto do mundo, com condições de tratar o problema da infertilidade oferecendo as melhores alternativas em reprodução assistida, cuja evolução só está no começo. Por isso, as leis não podem barrar a ciência. Temos muitas pessoas que podem ser beneficiadas com a reprodução assistida. Não podemos negar esse direito de acesso aos melhores tratamentos. Isso é uma questão, antes de tudo, de saúde.
Dr. Edson Borges Júnior é Diretor Médico do FERTGROUP e Diretor Científico do Instituto Sapientiae – Centro de Estudos e Pesquisa em Reprodução Assistida.